"Quando alguém está numa leitura e levanta os olhos como se estivesse a apreender com muito mais intensidade o que acaba de ler, é esse o momento em que esse alguém fica totalmente envolvido, como se pensasse: «isto é meu, isto tem a ver comigo». Cada um tira da leitura o que necessita."
José Saramago
Em França, a revolta foi grande, quando o governo encerrou livrarias como lugar não essencial, durante as medidas mais duras de confinamento Covid, em Outubro e Novembro 2020.
Grandes artistas, escritores, actores, ilustradores revoltaram-se. E apoiaram a luta. Publicaram artigos de opinião, ilustrações pertinentes.
“Puisque les théâtres et les cinémas sont fermés, la librairie est le dernier endroit où on peut avoir accès à la culture”,
Anne Martelle, SLF
Confesso que eu própria fiquei revoltada. Logo a França! Um país que dá ou dava - já não sei - muito valor à cultura. E sobretudo aos livros e à literatura, em geral.
“À une époque où on vit des moments d’isolement, de tension, le livre nous fait réfléchir sur l’importance de la lecture et de la compréhension de la vie humaine dans toutes ses composantes"
Vincent Montagne, SNE
Librairie Les Guetteurs de vent (Paris 11e),le 29 octobre 2020
crédits: Agnès DHerbeys/ MYOP pour le Monde
A imagem é muito elucidativa. Olhemos a fila para pagamento, numa das livrarias francesas, em vésperas de reconfinamento no país.
Que seria de muitos de nós, se não tivessemos acesso aos livros. Bem sei que há livrarias virtuais, e a compra de livros online.
Não é comparável! O gosto de entrar numa livraria, de admirar as estantes e mesas cheias de livros, de pegar em um livro, folhear, sentir o odor do papel, a espessura das folhas. E o gesto de virar a página, antes de seleccionar aquele livro que desejamos comprar. Incomparável.
Tudo isto me leva a não comprar livros online.
Remetendo-me agora à nossa realidade. As livrarias não fecharam em momento algum durante os vários confinamentos. E são muito procuradas?
Infelizmente não. Dá tristeza ver algumas das mais conhecidas livrarias, muitas delas em centros comerciais, quase vazias. Nem assim.
Saudade das livrarias de rua. Livraria Leitura, a original, na cimo da Rua de Ceuta. Ou a Livraria Bertrand, a original, na rua de Santo António. Só para enumerar duas.
Prendem-se a elas grandes memórias afectivas. Muita gente ali leu e conviveu, tal como disse Manuel Alegre, quando a Leitura encerrou.
Quem desejasse ler os últimos ensaios saídos em França ou em Espanha, tinha de ir à Leitura.
A primeira Faculdade de Letras do Porto encontrava-se lá toda. Professores e alunos. E poetas, escritores, artistas, gente da cultura.
Procurávamos edições especiais, ou os chamados beaux livres, estrangeiros ou portugueses, que tinham na Leitura a sua montra de eleição. Oh! Saudade!
Hoje, a grande Livraria Bertrand, aberta no mesmo espaço de uma outra Livraria Leitura mostra-se como um armazém de livros, onde a escolha e o atendimento nada têm a ver com os verdadeiros livreiros que conheci.
As livrarias estão vazias. Singularmente vazias. Não há pessoas a comprar livros. E são muito poucas as que entram. Nem que seja para dar uma vista de olhos, ou saber das últimas publicações.
Tristemente, os livros aguardam em silêncio, fechados, alinhados, nas mesas ou estantes. Poucos os valorizam.
E para ser sincera, os colaboradores que deveriam fazer um atendimento responsável, não fazem nada para atrair o cliente, leitor frequente ou não. Muitas vezes indiferentes.
Saudades igualmente da antiga Livraria Almedina, num outro centro comercial, onde ia ver e comprar algumas das mais recentes novidades literárias, após uma sessão de cinema, ao sábado, final de tarde. Sempre cheia.
Ou da 'antiga' Livraria Bertrand que funcionou, como já escrevi, durante muitos anos num pequeno espaço, num centro comercial da cidade. Sítio acolhedor, pequeno, e cheio de livros até ao topo. Aí, tantas vezes encontrei Agustina Bessa-Luís, quase tão assídua quanto eu.
Os colaboradores saudavam a entrada dos leitores, conheciam os mais frequentes, alertavam para as últimas publicações.
E atentos aos nossos gostos e escritores preferidos, tinham a delicadeza de mostrar este ou aquele livro/ autor posto de lado, com a ideia de nos poder interessar. E acertavam.
Acabou a delicadeza no atendimento, a atenta postura perante o leitor que entra. Indiferença quase total. E em certos momentos, quase nos fazem o favor de vender um livro.
A semana passada, talvez, fui comprar, em momentos diferentes, dois livros que sairam há pouco tempo. Autores que não dispenso.
Antonio Tabucchi, Estórias com Figuras (1943-2012), um livro de contos que parte das pinturas que o escritor admirava.
«Creio poder afirmar que a pintura entrou fortemente na minha escrita. Entrou como estímulo, como insinuação, também um pouco como encantamento, e também um pouco, amiúde, como ditado de textos que escrevi."
Antonio Tabuccchi
Uma viagem onírica entre recordações e atmosferas poéticas com obras de Paula Rego, Graça Morais, entre muitos outros.
Comecei há pouco a ler, juntamente com Quichotte de Salman Rushdie. Tal como Cervantes escreveu Dom Quixote para satirizar a cultura do seu tempo, Rushdie transporta-nos numa desvairada corrida através de um país à beira do colapso moral e espiritual.
"Inspirado pelo clássico de Cervantes, Sam DuChamp, um medíocre autor de livros de espionagem, cria Quichotte, um cortês e apatetado vendedor ambulante obcecado pela televisão que é vítima de uma paixão impossível por uma estrela de TV."
Livraria Bertand actual, no mesmo centro comercial, em frente ao antigo espaço que foi largamente esmagado, então, pela imensa Leitura.
Hoje, espaço mais parecido com um armazém de livros. Nada acolhedor, má apresentação dos livros, selecção muito desajustada de assíduos e mais cuidadosos leitores. Atendimento frio, desinteressado, quase nos dá vontade de virar costas ao desejo imenso de comprar o livro que já levamos em mente.
créditos: Público
Serve esta postagem para celebrar o Dia das Livrarias e do Livreiro, que hoje se celebra. Inspiração vinda de Espanha, trazida por José Saramago - assinalando o aniversário da morte de Fernando Pessoa e de Fernando Assis Pacheco - de alerta para os livreiros. Um maior cuidado na selecção ou formação dos seus colaboradores?
Por que não investir em estudantes universitários dos cursos de Letras? Estudam literatura, valorizam os livros, estão informados sobre livros e seus autores.
Se não, as livrarias vão acabar por morrer, asfixiadas de livros que não saem das prateleiras.
Era suposto as pessoas em confinamento agarrarem-se mais à leitura. Em Portugal, são poucas. Por muito que as escolas façam para incentivar os jovens para a leitura, não se vêem resultados nítidos.
“É um sinal dos tempos, em que o livro anda para trás e o mundo não anda para a frente sem livros”
Manuel Alegre
G-S
Fragmentos Culturais
30.11.2021
actualizado 30.11.2022
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