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"Não havia limite, o teclado escondia o infinito. Parecia simples, sete oitavas, não mais, um espaço tão curto que cabia dentro dos seus braços - e no entanto tinha a vastidão do mar." (...)
Teolinda Gersão, Os Teclados,
Publicações dom Quixote, 1ª edição, Abril 1999
Publicações dom Quixote, 1ª edição, Abril 1999
Morreu Hélia de Soveral, minha professora de piano, minha amiga e mestre, numa das áreas em que me especializei.
De grande sensibilidade musical e humana, acompanhou a minha adolescência e depois a minha vida, enquanto sua saúde o permitiu.
Estudou com Luís Costa, um dos notáveis compositores da música contemporânea portuguesa, e mais tarde com grandes mestres internacionais, destacando-se a sua participação no último curso de interpretação de Alfred Cortot, uma das maiores referências da música de piano.
Foi uma das professoras mais importantes que passaram pelo antigo Conservatório de Música do Porto.
"Não impeças a música. Que música? Antes de mais, a deste concerto que é a vida humana, onde temos obrigatoriamente de ocupar o nosso lugar, pequeno ou grande. Não somos cigarras que gritam perdidamente no ramos de pinheiro em longo dia de verão. Devemos estar atentos ao que se passa à nossa volta: uma boa parte do nosso destino depende da sensibilidade do nosso ouvido, da qualidade da nossa inteligência e do virtuosismo dos nossos reflexos."
A sua visão sagaz e pioneira da importância da música como parte integrante do ser humano, fê-la avançar posteriormente com dois grandes projectos na cidade do Porto - a Escola de Música do Porto - por onde passaram nomes tão consagrados como Pedro Burmester, António Pinho Vargas, Miguel Henriques e tantos outros.
Mais tarde, compreendendo a importância de formar músicos profissionais - Escola Profissional de Música do Porto - de onde saiu uma nova geração de músicos que hoje são solistas ou integram grandes orquestras nacionais. E internacionais. É o caso de Abel Pereira, trompa, solista - Principal Horn - na National Symphony Orchestra,nos Estados Unidos.
Professora Hélia Soveral nunca esqueceu a vertente cultural! Considerava, e foi pioneira, que um músico só seria inteiro se tivesse uma educação cultural alargada.
Professora Hélia Soveral nunca esqueceu a vertente cultural! Considerava, e foi pioneira, que um músico só seria inteiro se tivesse uma educação cultural alargada.
Daí ter integrado cadeiras de cultura geral nos seus cursos de Música, que abriram muitas fronteiras a tantos jovens que buscavam a sua escola.
Teve um outro sonho! Fundar o Conservatório de Música de Viseu, como ilustre viseense que se orgulhou sempre de ser.
Foi com uma imensa mágoa que a vi ontem partir. E lembrei um texto que eu escrevera, em tarde quente de Agosto 2006, num outro espaço:
"Há dias em que as lembranças aparecem e se instalam de mansinho. E vêm para permanecer in tempo, na imagética da vida.
Hoje é um deles! Já ontem à noite pairava no ar uma certa nostalgia, que fora arrumando no cantinho da memória, como que não querendo dar-lhe demasiada importância.
Mas, mal acordei, ela ali estava , certa e segura, como que relembrando que não é sentimento que se arrume. A pureza de momentos vividos é para ser presente.
A foto não foi escolhida só pela beleza estética que é inegável. Tocou-me profundamente. E por que razão? Pela ilustração quase verídica de momentos próximos de meu ser.
Trouxe-me de volta longas horas sentada em frente ao piano, lendo partituras longas, repetindo repetindo escalas, exercícios, compassos, aprimorando peças, preparando exames, audições, participação em concursos.
Tudo isto fez efectivamente parte de meu percurso musical.
Lembro o rosto e o jeito da professora, o seu grau de exigência, o lápis sempre em toques ritmados, ou então o bater do pés nervosamente, quando sentia um compasso errado, num acompanhamento permanente das notas dedilhadas, tantas vezes distraidamente, em tardes de verão quentes, como a de hoje.
(...) Às vezes, ela saía, logo a seguir, caminhava na rua, tocando apenas mentalmente, para não se deixar interromper. Andava pelo meio das casas e ouvia ouvia (...) As árvores balançavam os ramos, e os carros passavam, as pessoas cruzavam-se com ela, mas não a interrompiam. Só quando chovia ela se abrigava debaixo de uma varanda ou no vão de uma porta, parava mentalmente de tocar e fechava o piano.
Teolinda Gersão, Os Teclados,
Publicações Dom Quixote, 1ª edição 1999
Meus pensamentos voavam sempre para bem longe, pausas de sobrevivência de uma miúda que procurava também nos livros, um recanto complementar àqueles pulsares repetitivos e por vezes fastidiosos. Mas o empenhamento, esse sempre foi constante.
E chegado o momento de ver o meu trabalho exaustivo trocado pelo prazer de tocar, mesmo que sob o imenso stresse de ser escutada ou avaliada, era um sentimento pleno de bem-estar melódico.
A música dava-me a outra vertente da minha sensibilidade que se desenvolveu e aprimorou no estudo dos grandes compositores. E me acompanha ao longo da vida.
Partitura original de Johann Sebastian Bach
credits: Jens Meyer | AP 2006
Talvez que seja o tempo certo - há coisas inexplicavelmente sentidas - para inscrever neste espaço de alguns sentires, o meu enorme carinho pela minha professora de piano, uma afectuosa e sincera homenagem.
Uma excelente profissional e uma pianista de grande mérito que fez muito pelo ensino da música em Portugal, e tão pouco reconhecida.
Actualmente, restringida por uma doença implacável que lhe destruiu a capacidade maior - poder continuar a tocar e a leccionar.
Um beijo muito sentido e um abraço musical eternamente fraterno!"
G-Souto (texto original)
30.08.2006
Não sei se alguma premonição se adentrou em mim, nessa tarde de Agosto.
(...)"Et non seulement l'imagination musicale, celle d'un Chopin, d'un Schumann ou d'un Fauré, qui se suffit à elle-même et qui traduit, sans le formuler explicitement, les rêves et les désirs humains," (...)
Alfred Cortot, La Musique Française de Piano,
Presses Universitaires de France, 3e édition, 1948*
G-Souto
Fragmentos em tons dolentes de muita mágoa numa homenagem terna a Hélia Soveral Torres, minha querida amiga e professora, com a lição de piano de Alfred Cortot, seu querido mestre.
A lição é em si uma verdadeira lição de poética musical.
16.05.2009
Copyright © 2009-Fragmentos Culturais Blog, fragmentosculturais.blogspot.com®
A lição é em si uma verdadeira lição de poética musical.
16.05.2009
Copyright © 2009-Fragmentos Culturais Blog, fragmentosculturais.blogspot.com®
* Nota: Livros que meus pais me trouxeram de Paris, numa primeira edição, tal como pedira, e que a professora Hélia Soveral me aconselhara, conhecendo ela o meu apreço pela música de Chopin.








