terça-feira, 22 de maio de 2018

Júlio Pomar : Um tributo quase intimista





Júlio Pomar
10.01.1926 | 22.05.2018

"Há artistas cuja importância está ligada a um momento específico da história da arte. Outros distinguem-se por conseguirem dar sucessivos impulsos à obra ao longo da vida. Júlio Pomar, que faleceu esta terça-feira em Lisboa, aos 92 anos, fez o pleno."

in Expresso, Obituário




L'Étonnement,  1979
Júlio Pomar

Morreu Júlio Pomar. O pintor que comecei a admirar desde muito cedo. Dois irmãos, seus amigos pessoais, tinham obras suas em casa. E eu ficava-me a admirar aquelas telas vibrantes, em rasgo e me cor que me reenviavam para paisagens bem mais longínquas. Meu olhar penetrava na tela e por ali deambulava a minha imaginação. Múltiplos sentires. Viagens infindáveis.

Tive o privilégio de conhecer Júlio Pomar quando meus irmãos, um deles vivendo em Paris, nos juntou num jantar de amigos. Aí esteve também Eduardo Luís que morreu precocemente e cuja obra também me fazia esquecer de mim, mas de modo distinto. Uma pintura figurativa 'trompe l'oeil' delicadamente virtuosa, desenvolvida a partir de um itinerário muito próprio e solitário.



Livro dos Quatro Corvos
Júlio Pomar
créditos: Museu Gulbenkian

Já o escrevi. Júlio Pomar é o pintor português com quem me identifico por inteiro! É com um olhar livre que contemplo as suas telas! Sempre!

A pintura contemporânea dá-nos essa liberdade. A de experimentar todos os sentires sem prisões a conceitos, ou definições de belo ou de feio. Todos somos sensibilidade imensa. 

[...] e cuja base imaginária assenta (assentará?) no infinito do nada onde mergulham sem mercê nuvens, razões, poderes."

Júlio Pomar, Da Cegueira dos Pintores
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986




Mascarados de Pirenópolis XIV, 1987
 Júlio Pomar

A década de 80 - e foi por aí que o encontrei à mesa, entre familiares e amigos, em Paris - está considerada das mais importantes na obra de Júlio Pomar. O pintor instalara-se em Paris nos anos 60.

Pintou muito, grande variedade de temas abordados, que vão desde os aspectos da cultura popular brasileira em trabalhos realizados após viagens ao Brasil (1987 e 1988), até temas de carácter erudito, como as séries “Os Tigres”, a “Mitologia”, os “Corvos” e os “Retratos”




Edgar Poe, Charles Baudelaire, 
um Orangotango e o Corvo, 1985
Júlio Pomar

A literatura esteve sempre presente, através da ilustração, ainda na década de 80: os universos de Baudelaire, Pessoa, Poe ou a mitologia. Mas também os índios Xingu da Amazónia, com quem conviveu durante as suas estadias no Brasil. Linhas vibrantes, tons esfuziantes.



Emigrantes
Ferreira de Castro
Portugália Editora, 1966

Ilustrou livros de autores portugueses como Emigrantes de Ferreira de Castro, O Romance de Camilo de Aquilino Ribeiro. Ou desenhos para Guerra e paz de Tolstoï.

Foi um leitor de insaciável curiosidade e com um olhar ao qual nada do real ou do imaginário escapava.




Dom Quixote e os carneiros, 1961
Júlio Pomar

"Esta estética inconfundível vai ampliar-se em formato e alcance em pinturas dos anos 90 e já do século XXI, assimilando ou retomando referências tão diversas como a Odisseia, Frida Kahlo, Lewis Carroll ou D. Quixote." 

"Os Tigres" foram apresentados na Galeria 111, Lisboa, 1983. Aqui Pomar atinge a plenitude plástica. Os tigres surgem como a visibilidade de um alter-ego, figura metafórica do desejo.




Tigre
Júlio Pomar
detalhe: António Jorge Silva

Talvez seja esta a fase mais intimista e, logo a mais fantástica. Porém é nela que encontramos um Pomar liberto. É provavelmente a fase que mais gosto. 

As imagens que agora aqui deixo, não fazem justiça aos quadros,. As cores podem estar adulteradas, os pormenores perdem-se e a dimensão desaparece. 

Mas se um dia puderem admirar ao vivo algumas das sua obras, não percam a oportunidade por nada deste mundo. Deixam-nos suspensos.

Júlio Pomar exercia uma autocrítica constante sobre a sua obra, o que o levava a fazer e desfazer, a pintar e repintar o trabalho até que ao seu olhar surgisse por fim concluído.

"Postas de parte as atracções específicas que caracterizaram cada período do meu trabalho, sempre uma imagem deu origem a outras imagens, e sempre o meu quadro se fez - ou se desfez - de sucessivos encaixes ou desencaixes . E muitas vezes se faz à medida que as imagens se desfazem."

Júlio Pomar, Da Cegueira dos Pintores
in Colecção arte e artistas, IN-CA, 1986, pág. 31





Mural no cinema Batalha, Porto
Júlio Pomar
https://observador.pt/

A sua arte estende-se ao desenho, ilustração, gravura, cerâmica, escultura, tapeçaria. Encontra-se na arte pública.
Mural e frescos no cinema Batalha, no Porto, mural em azulejo na estação de metro do Alto dos Moinhos em Lisboa,  bem como intervenções em Brasília, e Bruxelas: station Jardin Botannique, metro, numa homenagem a Fernando Pessoa.
Nas últimas décadas, a sua obra foi sendo profusamente reexaminada. A Fundação Gulbenkian dedicou-lhe uma Retrospectiva em 1978. Uma exposição antológica itinerante percorreu o Brasil, 1990. Autobiografia, Museu Berardo, Sintra, e A Comédia Humana (CCB) mostraram-se em 2004.
Em 2008, foi a vez de Serralves apresentar Júlio Pomar: cadeia da relação. E em 2015, A Felicidade em Júlio Pomar na Galeria Municipal do Porto, Palácio de Cristal.

Júlio Pomar
créditos: Botelho
Júlio Pomar deixa uma obra multifacetada, percorrendo mais de sete décadas, influenciada pela literatura, pelo erotismo e algumas viagens. E pela resistência política. Mas, quando aconteceu ao 25 Abril, Pomar já se tinha afastado da actividade política.



Da Cegueira dos Pintores
Júlio Pomar
Imprensa Nacional, 1986
https://livrosusadosantigosraros.files.wordpress.com/
Júlio Pomar escreveu Catch: thèmes et variationsDiscours sur la cécité du peintre...Et la peinture? (éditions de la Différence, Paris, 1984, 1985 e 2000). Os dois últimos traduzidos por Pedro Tamen com os títulos Da Cegueira dos Pintores (Imprensa Nacional, 1986) e Então e a Pintura? (Dom Quixote, 2003); e duas colectâneas de poesias Alguns Eventos e TRATAdoDITOeFEITO (Dom Quixote, 1992 e 2003).




Então e a Pintura? 
Júlio Pomar
edições Dom Quixote, 2003

Revelou-se como poeta na International Poetry Magazine em 1973, estando os seus poemas reunidos no livro " Alguns Eventos ", editado pela D. Quixote em 1992.




Atelier Museu Júlio Pomar
créditos: CML



Criada a Fundação Júlio Pomar, 2004. E teve o privilégio de ver seu Atelier transformado em Atelier Museu Júlio Pomar em 2013.

"O representado, se existe, apresenta-se como engodo do «visto» . A obra tende a permanecer aberta, pois o olhar interroga e trabalha o «visto».'

“A abstracção é-me difícil. Digo muitas vezes «coisas». Não me desligo do tocável”.  

Júlio Pomar

G-S

Fragmentos Culturais

22.05.2018
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